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A Tokenização de Ativos Imobiliários e os Limites da Regulação Profissional: Crítica à Resolução COFECI nº 1.551/2025

ARTIGO: A Tokenização de Ativos Imobiliários e os Limites da Regulação Profissional: Crítica à Resolução COFECI nº 1.551/2025

3 de outubro de 2025

Por Igor França Guedes

A crescente difusão de instrumentos digitais no mercado imobiliário brasileiro tem estimulado debates em torno da chamada tokenização de ativos imobiliários, processo que consiste em representar digitalmente, por meio de tecnologias como blockchain, direitos vinculados a bens imóveis. Sob essa perspectiva, a Resolução COFECI nº 1.551/2025, que instituiu o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais (STID), as Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais (PITDs) e os Tokens Imobiliários Digitais (TIDs), surgiu como uma tentativa de normatizar tais práticas.

Contudo, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a medida revela-se juridicamente questionável, economicamente arriscada e institucionalmente inadequada. A Nota Técnica nº 03/2025 do Fórum Nacional de Desenvolvimento Imobiliário (FNDI) é enfática ao apontar que a resolução ultrapassa a esfera de competência do Conselho Federal de Corretores de Imóveis (COFECI), configurando um regime paralelo que ameaça a segurança jurídica do mercado imobiliário nacional.

1. Competência Regulamentar e Reserva Legal

O ponto de partida para a análise crítica é a questão da competência regulatória. Nos termos do art. 22 da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre direito civil e registros públicos, funções exercidas, em âmbito infraconstitucional, por órgãos como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Banco Central do Brasil e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O COFECI, enquanto autarquia destinada à disciplina do exercício da profissão de corretor de imóveis, possui atribuições estritamente vinculadas ao campo da fiscalização profissional (Lei nº 6.530/1978). A edição de um marco regulatório que cria “direitos imobiliários tokenizados” extrapola tais atribuições, configurando vício de legalidade e até de inconstitucionalidade material.

A Nota Técnica ressalta que a criação de um ecossistema normativo paralelo, afastado dos reguladores constitucionais e legais, gera opacidade de informações, insegurança para agentes econômicos e fragilização da estrutura registral brasileira.

2. A natureza jurídica dos tokens imobiliários

Outro equívoco estrutural da Resolução COFECI reside na tentativa de conferir aos Tokens Imobiliários Digitais (TIDs) a aparência de representações dotadas de eficácia real sobre imóveis. Embora a tokenização seja um instrumento útil para negociação de posições contratuais ou de direitos obrigacionais, não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer possibilidade de que um token, por si só, constitua, transfira ou extinga direitos reais sobre imóveis sem o devido registro na matrícula imobiliária (arts. 1.227 e 1.245 do Código Civil).

Trata-se, portanto, de uma ficção jurídica perigosa, apta a induzir o usuário (ou consumidor) em erro, levando-o a crer que o token confere a mesma proteção que o registro público. Na realidade, a transação em blockchain, desprovida de fé pública registral, reduz-se a um vínculo obrigacional perante a plataforma, incapaz de produzir efeitos erga omnes.

3. Riscos econômicos e impactos no crédito imobiliário

O sistema registral brasileiro cumpre papel central no financiamento imobiliário, funcionando como lastro das operações de crédito que movimentam um dos maiores volumes de recursos da economia nacional. O registro imobiliário, e, por consequência, a matrícula do imóvel é o instrumento de segurança jurídica e de fé pública, a partir do qual se estruturam a alienação fiduciária, a hipoteca e a securitização.

Ao fragilizar a centralidade da matrícula, a Resolução COFECI ameaça a própria engrenagem do mercado de crédito, com potenciais reflexos no encarecimento das operações, redução da liquidez e instabilidade dos investimentos imobiliários. O resultado previsível é a oneração do acesso à moradia, em contrariedade ao mandamento constitucional que assegura esse direito social.

4. Vulnerabilidades regulatórias e risco sistêmico

A ausência de articulação entre o modelo instituído pelo COFECI e os sistemas oficiais de supervisão – CNJ no âmbito registral e Banco Central no âmbito financeiro – amplia os riscos de lavagem de dinheiro, fraudes e ausência de rastreabilidade das operações. Como alerta a Nota Técnica, a substituição da matrícula imobiliária por “espelhos” digitais em blockchain compromete mecanismos de prevenção de ilícitos e afasta a atuação dos delegatários responsáveis pela supervisão extrajudicial.

5. Considerações finais

O desenvolvimento tecnológico e a adoção de novos instrumentos digitais não devem ser refutados pelo Direito. Ao contrário, a inovação pode ser incorporada como ferramenta de eficiência e transparência. Todavia, a Resolução COFECI nº 1.551/2025 é exemplo de uma tentativa precipitada e juridicamente inadequada de normatizar fenômenos complexos sem respaldo legal e sem observância às competências constitucionais.

A posição assumida pelo FNDI é correta ao recomendar a revogação da resolução, de modo a assegurar que a tokenização imobiliária seja discutida em foro adequado, sob a égide da lei, com a devida participação dos órgãos competentes e com garantias de segurança jurídica, estabilidade econômica e proteção social.

Além de inovação, o mercado imobiliário brasileiro precisa de solidez institucional e previsibilidade regulatória. Sem isso, qualquer avanço tecnológico se converte em risco, não em oportunidade.

*Igor França Guedes é Oficial do Registro de Imóveis da 1ª Circunscrição de Goiânia (1ºRIGO) e presidente do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de Goiás (SINOREG-GO).