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OPINIÃO: Acabar com cartórios causaria insegurança e ineficiência nos serviços públicos

17 de setembro de 2018
Por Marco Aurélio de Carvalho

De norte a sul, mais de 28 mil candidatos registrados pelo Tribunal Superior Eleitoral inundam 147 milhões de eleitores com propostas e promessas políticas. Nesse grupo, encontram-se presidenciáveis, aspirantes ao Senado, à Câmara dos Deputados, a governadores de estados e a representantes nas assembleias legislativas estaduais.

É a festa da democracia brasileira – uma babilônia eleitoral que reúne 35 partidos políticos. O bom desempenho eleitoral dos candidatos será testado nas urnas. Até o veredicto final do eleitor, na urna, os políticos vão ajustando suas mensagens para não desperdiçar nenhum voto. Em busca de seduzir o eleitor, são abertas as portas do reino das promessas.

Um folclórico político mineiro, Nelson Thibau, nos já distantes anos 1960, apregoava, em seu programa de governo, caso eleito, a chegada triunfal do mar em Minas Gerais: o aqueduto sairia de Angra Reis (RJ) e desaguaria na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Agora, em 2018, um candidato a deputado federal promete lutar para transferir a capital do país para São Paulo e – em troca – a cidade de Brasília, abandonada, seria transformada em um museu a céu aberto para dar lições de desperdício.

Se há propostas estapafúrdias, imediatamente rejeitadas, há sempre ideias exóticas, não prioritárias para o país, mas que buscam tão somente atrair eleitores impacientes.

Uma delas abraça a ideia de extinguir os serviços dos cartórios e substituí-los por empresas privadas e com alta tecnologia (blockchain, um sistema de dados e de registros coletivos em diversos computadores, onde, por exemplo, ficam gravadas as negociações de compra e venda de bitcoins). Aliás, o alerta é pertinente: diversos bancos centrais, de países europeus, dos Estados Unidos e do próprio Brasil, alertaram sobre os riscos destes investimentos.

Quanto à extinção dos cartórios, uma das premissas – absolutamente falsa – é que tais instituições pertencem à velha ordem política patrimonialista.

Trata-se de um equívoco. A gestão de um cartório, há mais de 30 anos, requer aprovação em concurso público com elevado grau de competição, coroando, assim, o acesso do candidato pelo mérito e não por “herança” ou clientelismo político.

Ao avançar sobre a ideia enganosa a respeito da inoperância e falta de utilidade social dos cartórios é possível detectar que, esboçada de forma vaga e genérica, a proposta apresenta deficiências estruturais e esconde significativos e questionáveis interesses econômicos e financeiros.

O primeiro problema da proposta, por desinformação pura ou desonestidade intelectual, é ignorar completamente o arcabouço legislativo e institucional que regulamenta a atividade dos cartórios no país. Por exemplo, a manutenção de muitas atividades dos tribunais de Justiça e das defensorias públicas – que promovem, de forma gratuita, assistência jurídica para pessoas em condição de vulnerabilidade e sem recursos – conta com repasses financeiros oriundos dos cartórios. Do volume de receitas que ingressam nos cartórios, para ficar no exemplo do estado de São Paulo, 73% são destinados a tais repasses. Em torno de 77 diferentes órgãos, fundos e entidades – notadamente do sistema judiciário – recebem verbas de notários e registradores brasileiros.

Quem abraça a promessa eleitoral, por qualquer motivo, acaba por endossar um movimento de enfraquecimento das defensorias públicas, o que significa penalização dos cidadãos mais pobres, com ônus para toda a sociedade. Afinal, sem recursos suficientes, as Defensorias precisariam recorrer ao orçamento da União para manter suas nobres e indispensáveis atividades .

Ainda no terreno dos números, no ano de 2016, por meio do instrumento de protesto nos cartórios, em torno de R$ 6 bilhões foram repassados para o erário. O montante refere-se não só aos valores que saem das custas, mas também aos extraídos do recebimento de impostos.

Outro grave problema da proposta é que as funções e atos revestidos de fé pública seriam assumidos por grupos privados. A fé pública pode ser entendida como uma espécie de chancela de autenticidade, conferida por comando constitucional aos delegatários dos serviços públicos notariais e de registro, e não deveria, pois, ser mercantilizada. Isso explica, inclusive, porque os cartórios estão submetidos à intensa fiscalização do Poder Judiciário.

Imagine o cidadão que já enfrenta problemas diários com as operadoras de telefonia, companhias aéreas, bancos, televisão a cabo, provedores de internet e outros prestadores de serviços – vide rankings dos órgãos de defesa e proteção do consumidor – enfrentar uma empresa privada que, ao ser contestada, passe a alegar que goza de “credibilidade especial”, com força probatória. Pois é, não estaríamos distantes do drama vivido por milhões e milhões de brasileiros.

O terceiro problema da intenção de desregulamentar a atividade dos cartórios adquire proporções alarmantes. São os casos frequentes de vazamentos e exposição de dados, de empresas e de pessoas físicas. De forma ilícita e colocando em risco a privacidade individual e a segurança dos negócios e das empresas, a divulgação de dados, ou apropriação de informações por terceiros, tornou-se um problema mundial, que é, inclusive, objeto de investigações nos Estados Unidos, Europa e Ásia. No centro dos questionamentos, as redes sociais, como o Facebook, foram duramente fustigadas e rachaduras em suas reputações foram detectadas.

Aqui no Brasil, como noticiado na semana passada, milhões de cidadãos brasileiros tiveram seus dados armazenados nos sistemas SCPC da Boa Vista Serviços.

Tais vazamentos, que ferem direitos sagrados como a privacidade e a proteção de dados, revelam a negligência no manuseio das informações, além do risco da manipulação para uso comercial, ou venda – sem consentimento dos cidadãos.

O quarto gargalo da promessa eleitoral – endossada por representantes de empresas do mercado – é desconsiderar o papel exercido pelos cartórios como pilares da segurança jurídica e como instrumentos auxiliares do Poder Judiciário.

Por exercerem as atividades sob fé pública, as serventias extrajudiciais atuam como instâncias intermediárias para resolução de conflitos. Esta função dos cartórios tem grande impacto no sentido de evitar o congestionamento de ações no Judiciário. O impressionante volume de litígios sob os ombros do Poder Judiciário dificulta a boa administração da Justiça no País. O ônus da morosidade recai diretamente sobre cidadãos e empresas.

À guisa de informação, o Conselho Nacional de Justiça registra que o Poder Judiciário finalizou o ano de 2016 com quase 80 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva.

Para aliviar este cenário os cartórios participam ativamente do movimento de “desjudicialização”, uma vez que oferecem meios de resolução de conflitos e de prevenção de litígios. Desde 2007, com a autorização para que separações, divórcios, inventários e partilhas consensuais fossem realizadas em cartórios, os prazos destes atos caíram e os tribunais de Justiça se livraram do ônus de atender milhões de demandas, com significativa economia para os cofres públicos. Sem falar no instrumento de protesto, cuja elevada eficiência na resolução de conflitos relacionados à recuperação de créditos evita que tais litígios cheguem aos tribunais.

Eliminar serviços de utilidade pública para a sociedade, a pretexto de reduzir supostos privilégios, é um discurso que pode encantar os mais desavisados. Examinado com lupa, descobre-se que é promessa eleitoral destinada ao fracasso: vai resultar em mais congestionamento de processos na Justiça, maior insegurança jurídica, menor eficiência na prestação dos serviços notariais e de registro, mais vulnerabilidade de dados, mais despesas para o País e menos recursos para os cofres públicos.

Certamente não é esse o desejo dos eleitores brasileiros.

Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em Direito Público, membro integrante do Grupo Prerrogativas e associado fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

 

* Este artigo foi originalmente publicado em Consultor Jurídico